Engana o cérebro, distrai da dor
A realidade virtual (RV) vem despontando como uma terapia não-invasiva, não-farmacológica, de muita promessa no tratamento da dor crônica, inclusive da dor fantasma em paraplégicos e amputados.
Hoje olharemos o desenvolvimento desta tecnologia no século XX, a RV imersiva no tratamento da dor crônica e alguns estudos que demonstraram o potencial desta tecnologia no tratamento da dor crônica.
Muitos já conhecem a tecnologia RV, especialmente na forma de vídeo-games, jogos interativos, animações, filmes, etc., produtos da indústria do entretenimento.
Outra aplicação prática, desta vez na área militar, foi um simulador de voo, construído pela Força Aérea Americana para treinar seus pilotos nos anos 1980. Seis anos depois, a agência espacial NASA apresentou um ambiente virtual que permitia a interatividade por meio de comandos de voz, escuta da fala sintetizada e do som 3D, visualização por capacete e interatividade mediante o uso de luvas.¹
Se você ainda não conhecia: a RV simula um ambiente realístico, dando a sensação da presença da pessoa em um mundo virtual onde ela consegue ver, tocar, ouvir e interagir com o ambiente e seus elementos, mesmo estando em um ambiente distante do virtual, o real.
Segundo o professor Romero Tori, coordenador do Interlab – Laboratório de Tecnologias Interativas da Escola Politécnica da USP, em entrevista no dia 13/12/2017 na TV Brasil:
“É tecnologia capaz de enganar nossos sentidos por meio de um ambiente simulado.”
Os ambientes simulados são variados e incluem por exemplo, o mar, onde a pessoa poderá nadar com golfinhos e interagir com o ambiente de várias maneiras, ouvir o som do mar, das gaivotas, etc.,. Pode ser o campo, onde poderá se movimentar, passear, ouvir passarinhos, ver riachos, ou até sobrevoos aéreos em lugares exóticos ou selvagens, sem sair do leito.
Parece divertido e relaxante, não é? Mas, como isso reduz a dor?
Para os cientistas cognitivos, no alívio da dor, a RV funciona pelo princípio da “Attention Distraction”, literalmente a distração da atenção. A realidade virtual desvia a atenção do foco original — a dor, para um ambiente calmo e positivo, onde, além de estar presente, a pessoa poderá interagir, às vezes até usando um membro ausente na vida real. A interação produz estímulos prazerosos e relaxantes, que passam a prender a atenção do/a utilizador/a.
RV Imersiva
A realidade virtual imersiva é um estado em que a pessoa está totalmente envolvida num dado ambiente simulado, com todos seus sentidos concentrados nele. Quanto maior for a sensação do utilizador num determinado ambiente virtual, maior a realidade imersiva.
Um dos estudos importantes de RV na redução da dor, foi o projeto SnowWorld, “mundo da neve”, desenvolvido por Hunter Hoffman, um projeto de colaboração entre a Universidade de Washington e o Centro de Queimaduras Harborview, onde são tratados pacientes com queimaduras graves.
A dor tem forte componente psicológico, os sinais de dor chegando ao cérebro podem ser interpretados como dor… ou não. Se estiver pensando em dor, o/a paciente interpretará como dor, mas, se estiver com a atenção em outro foco, os sinais da dor ficarão em segundo plano, sendo substituídos pelos pensamentos da realidade daquele foco.
Engana o cérebro
E é aí que entra o “enganar” do cérebro mencionado no início deste artigo. Ficar absorto dentro do ambiente gerado pelo computador requer toda a atenção do cérebro, distraindo o paciente do processamento dos sinais da dor!
Nos pacientes com queimaduras, a morfina era eficaz no alívio da dor das queimaduras, mas não surtia efeito na hora da troca dos curativos ou remoção de grampos e/ou outros cuidados. Em momentos assim nenhuma analgesia funcionava bem. Para Hoffman et al, a RV foi eficiente no alívio da dor porque tirou o foco do paciente da sua dor e da consciência da sua condição de doente, desviando-o para os sinais multisensoriais do ambiente simulado.
Desde esta publicação do caso dos queimados, já se passaram quinze anos e múltiplos estudos bem-sucedidos e replicáveis. Hoje a RV também é aplicada no tratamento de ansiedade, fobias e TEPT (Transtorno do Estresse Pós-Traumático), especialmente entre veteranos de guerra, no tratamento odontológico, no tratamento de demências e na educação médica. Outra aplicação sendo bastante pesquisada é o tratamento da dor fantasma em amputados ou paraplégicos.
Dor fantasma
É comum paraplégicos e amputados sentirem dor no coto, isto é, dor no lugar onde perderam o membro, pois o cérebro age como se ainda estivesse lá, e isso é chamada de dor fantasma. Nesse contexto da dor, o que se sabe é que o estímulo táctil sobrepõe o estímulo da dor. Se o/a paciente mergulha na RV e concentra na experiência virtual, distrai da sua realidade e isto reduz a dor.
Trabalhando na reabilitação de pacientes paraplégicos (após lesão medular), um grupo de cientistas da École Polytechnique Fédérale de Lausanne, Suiça, estudou o alívio da dor fantasma usando uma prótese das duas pernas e a RV. A ideia é, no ambiente virtual, reconectar o cérebro dos pacientes com a realidade do membro amputado, estimulando a movimentação. Isto relaxa e reduz a dor fantasma.
No vídeo, o pesquisador principal Olaf Blanke, relata o experimento.
No estudo, os pacientes colocaram óculos 3-D para assistir a uma filmagem da prótese das pernas. A câmera estava posicionado para imitar a visão que o paciente teria de suas próprias pernas e os óculos davam a impressão de que as pernas eram realmente do paciente. Uma pesquisadora então bateu levemente com varetas finas as pernas do paciente e a área da coluna acima da região da lesão medular. Os indivíduos relataram que sentiram como se as próprias pernas estivessem recebendo estas leves batidas e disseram que esta sensação ajudou a diminuir a percepção da dor neuropática. Dr. Blanke e sua equipe concluíram que o tratamento com RV foi eficaz.
Pesquisas e projetos de RV imersiva como descritas acima estão cada vez mais comuns e com resultados que mostram sua eficiência. Pode parecer futurista, mas esse futuro já chegou e mais estudos e investimentos são necessários para tornar estes tratamentos economicamente viáveis, pois os equipamentos, como os óculos 3-D, ainda são caros.
PODE GOSTAR DE LER:
História da RV e seu uso na medicina. Artigo (em português) dos pesquisadores, José WV De Faria, EG Figueiredo e MJ Teixeira do HC-USP
Referências
¹ De Faria JWV, Figueiredo EG, Teixeira MJ. Histórico da realidade
virtual e seu uso em medicina / History of virtual reality and its use
in medicine. Rev Med (São Paulo). 2014 jul.-set.;93(3):106-14.
² Li, A., Montaño, Z., Chen, V. J., & Gold, J. I. (2011). Virtual
reality and pain management: current trends and future directions. Pain Management, 1(2), 147–157. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3138477/]
³ https://www.huffingtonpost.com/entry/virtual-reality-could-help-
people-with-phantom-pain_us_5877cec4e4b0077dca25d99b
4 http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(16) 31598-7/fulltext