Neste período de festividades, queremos contrabalancear com algumas reflexões sobre pessoas que estão doentes ou com dor ou que talvez estejam passando seu último Natal com seus familiares. Tema difícil, né? Sempre com a finalidade de informar e trazer luz às questões, convidei para escrever este post de Natal, Dr. Carlos Marcelo Barros da Santa Casa de Alfenas, onde ele é Diretor Clínico e Coordenador da Clínica de Dor e Centro de Cuidados Paliativos. Ele aborda o tema com muita sensibilidade e nos traz trechos da sua experiência clínica, depoimentos e valiosas sugestões de livros. Boa leitura! Aproveito para desejar a todos nossos colaboradores, leitores e leitoras um Feliz Natal. – Dr. Charles
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No período de Natal, em nossa cultura,somos tocados por sentimentos que ficam adormecidos durante todo o ano. Como médico percebo uma diferença nos sentimentos dos doentes e familiares nessa época. Talvez o clima coletivo do Natal faz aumentar a dor da ausência ou mesmo da doença, mais que em outras datas como aniversários.
Para pacientes e familiares enlutados, as festas natalinas tendem a remeter a uma sensação dolorosa da perda. Imaginemos os pensamentos de um paciente com doença terminal avançada internado nessa época, remoendo suas lembranças de Natais passados em família e ainda, a inquietude de poder realmente não estar presente no próximo.
O profissional de saúde não pode ficar imune a esses sentimentos mesmo que na maioria das vezes tenha que lê-los nas entrelinhas, nas palavras e gestos desconexos que, se colocados dentro de um contexto humanístico, passam a fazer todo sentido. Há um grito de socorro nesses momentos e precisamos desenvolver ao mesmo instante empatia e resiliência. Confesso que em muitas ocasiões não é fácil. Não há maneira técnica de lidar com esses sentimentos, com a dor da perda, seja ela familiar, pela morte da pessoa querida ou pelo luto antecipatório que pode ser vivido pelo próprio paciente. Não se ensina isso na faculdade.
Gratidão e felicidade no último Natal
Nunca me esqueço de uma jovem paciente com câncer avançado que me disse que devia muito ao tratamento da dor que havíamos realizado e eu perguntando, com um frio da barriga, por quê ela se sentia tão grata? A resposta abriu uma dimensão antes não tocada na minha prática médica, “O bloqueio permitiu que eu passasse meu último Natal sem dor. Pude brincar com meus filhos e sentar no chão para abrir os presentes, não ter dor me permitiu viver esse momento”.
Mesmo tendo total consciência que era seu último Natal, ela ainda conseguiu mostrar gratidão e felicidade por poder viver aquele momento.
É bastante frequente não dimensionarmos os efeitos que nossos atos e palavras podem trazer à vida de nossos pacientes. São relatos como esse que vão mudando o que meus olhos veem, e confesso enxergar a vida de maneira bem diferente hoje. Impossível mensurar em valores o que recebo de volta dos pacientes. Quem está próximo da morte nos deixa lições esclarecedoras de que devemos viver cada dia mais e melhor. Sou grato por elas.
O Natal, data marcante no subconsciente, tem o poder de nos levar a uma nostalgia irracional e pouco resiliente, de modo que nossas lembranças subliminares dominam o nosso sentimento e vemos nossa percepção de mundo contaminada por lembranças passadas.
Esse olhar holístico não pode ser negligenciado em nenhum momento. Não é ético nem digno do exercício profissional fingir que esse dia do ano é igual a qualquer outro porque não é. Se separarmos doença física de apelos da alma, nunca seremos o que realmente devemos ser para nossos pacientes. O que está diante de nossos olhos não é um mero corpo físico, e sim, um ser humano completo com suas aflições e lembranças, capaz de sorrir mesmo diante da terminalidade da vida.
Amor na dor
Já presenciei cenas inspiradoras de amor verdadeiro e puro, coisa que minha geração chegou a duvidar em alguns momentos. Hoje sei que existe.
Lembro do caso de um casal que passou décadas um ao lado do outro, no momento em que um estava deixando a vida, me recordo claramente do olhar do marido, à beira do leito de morte de sua esposa, dizendo, “Estamos juntos há quase quarenta anos, tivemos filhos e construímos nossa vida juntos, passamos todos os Natais em família e agora ela vai me deixar, não posso ser egoísta de querer que ela viva com tanto sofrimento, mas, não posso deixar de pensar em como será o próximo Natal”.
Em virtude deste texto liguei para conversar e saber como estava esta pessoa da minha lembrança e a resposta foi reveladora do sentimento, “Estamos bem, vivendo cada dia. Há momentos que estamos até sorrindo, mas esse Natal será muito difícil”. Daí me atentei mais uma vez para a força do simbolismo dessa data ao longo da vida.
Não é só flores
Por oposto, também aprendi a força do abandono e do desprezo, talvez o pior dos sofrimentos da alma humana, amplificado em muito pelo dito “espirito natalino”. É marcante o olhar de pacientes em fase final de vida sem ninguém familiar para acalantar os últimos momentos. Me recordo de um paciente que ficou internado várias vezes por dois meses e que não recebeu nenhuma visita nesse tempo, depois descobrimos que tinha vários irmãos — algo que ele mesmo omitia; ou da filha que, durante a internação da sua mãe com câncer avançado, mudou as chaves da casa e expulsou a própria mãe, que hoje vive da benevolência de um dos cinco filhos. Fatos assim me fazem perceber que não há limites também para a maldade humana.
Não tenho como responder se alguém que na sua vida só tenha vivido experiências ruins no Natal sofra menos que quem viveu mais experiências boas. Mas, acredito que sim, de alguma forma essas lembranças trazem angustia no presente se este estiverem associadas a grandes perdas.
Empatia e construção
Cuidados Paliativos é mais que uma área de atuação médica que tem a função de amenizar o sofrimento humano através do controle dos sintomas. É um olhar diferente para o exercício profissional onde colocamos o paciente e seus sentimentos como prioridade.
Recebemos diariamente uma página em branco para escrever nossa história e não podemos nunca entregar ao fim do dia esta página ainda em branco. Fazendo assim, incentivamos nossos pacientes e suas famílias a escreverem suas próprias páginas todos os dias, e a perceber que sim, é possível, em meio à dor e ao sofrimento pela ausência, encontrar algo acalantador.
De modo inesperado, para muitas pessoas esta construção de bons sentimentos não deixa o espirito de o Natal ser um fator de sofrimento e sim um fator de amparo, resiliência e amor ao próximo. Serão escritas páginas cheias de vida que podem ser lidas e relidas no futuro de modo a manter sempre viva a memória e os sentimentos bons da presença da pessoa querida entre nós.
Uma família me permitiu compartilhar esse texto sobre o primeiro Natal sem sua mãe: “
[quotes style=”modern” align=”center” author=””]O que deveria ser uma época de alegria, para nós esse ano se mistura a tristeza e a saudade. A família reunida para festejar o Natal, a alegria do amigo secreto e da escolha dos pratos para a ceia não será a mesma. Falta alguém…falta a nossa Mãe. No dia a dia talvez esse luto se misture às ocupações e a correria, mas no Natal não. Nada será igual. Mesmo mudando o local das comemorações, se misturando a outros, nada será igual…pois ela não está aqui. A mãe, a avó, a esposa querida não poderá receber nossos abraços e nosso carinho. E daí vêm as perguntas que não se calam: como ela está? Onde ela está? Será que está sabendo do nosso sofrimento? Será que sabe a falta que nos faz? Não temos as respostas, apenas a saudade que nesse primeiro Natal em família será pior. Mas, mesmo sabendo que vamos chorar mais do que sorrir, decidimos fazer isso juntos. Nossa família estará unida pois sabemos que todos têm alguém que pode não estar no próximo Natal. Nossa mãe estará conosco nas boas lembranças e no legado que deixou. Ela estará dentro do coração de cada um de nós. Feliz Natal, Mãe![/quotes]
Até hoje não aprendi o que dizer para uma mãe que vai passar seu Natal distante do filho que por qualquer motivo deixou este mundo, ou a família que pela primeira vez estará sem sua matriarca que sempre organizava toda ceia com tanto amor. Não há respostas para essas e tantas outras indagações que recebemos diariamente e talvez nunca tenhamos; mas, um sincero sentimento de empatia pode ao menos acalantar um pouco a dor da ausência.
Sempre falo para os alunos e residentes que me acompanham que não há maneira bonita de falar noticia ruim, mas há sim maneira empática. E, por falta de saber o que dizer, fico com a frase plagiada de um famoso texto… “A saudade é o amor que fica”.
Feliz Natal.
Livros que podem gostar de ler:
Conversas Difíceis – Douglas Stone (Ed. Elsevier)
Subliminar – como o Inconsciente influencia nossas vidas – Leonard Mlodinow (Ed. Zahar)
Ciências x Espiritualidade – Deepak Chopra, Leonard Mlodinow (Ed. Sextante)
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