DOR FANTASMA E NEUROPLASTICIDADE

Durante as Paralimpíadas, um dado me chamou atenção: 35% das pessoas com limitação ou incapacitação haviam sofrido lesões por acidente automobilístico. Entre as principais sequelas de acidentes graves estão a paraplegia ou amputação de um membro.

Isto me instigou a escrever hoje sobre dor fantasma, um quadro de dor que pode se manifestar de diversas maneiras e cujos mecanismos são pouco conhecidos ainda, o que torna seu diagnóstico e tratamento um desafio. Uma parte do entendimento desta dor está no campo da neurociência, que estuda as alterações na neuroplasticidade do cérebro relacionado ao membro ou parte afetada.

[A neuroplasticidade ou plasticidade neural é definida como a capacidade do sistema nervoso de modificar sua estrutura e função em decorrência dos padrões de experiência, e a mesma, pode ser concebida e avaliada a partir de uma perspectiva estrutural (configuração sináptica) ou funcional (modificação do comportamento).]

Dor do membro fantasma

As primeiras observações médicas sobre a dor do membro fantasma foram feitas por Amboise Paré (1510–1590), um cirurgião militar francês, que notou que após amputações, pacientes queixavam de dor severa no membro amputado. Esboçou vários modelos para explicar a dor, mas, foi durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) que médicos que tratavam os numerosos mutilados de guerra fizeram registros mais específicos acerca da dor.

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Aproximadamente setenta e cinco por cento das 60 mil cirurgias realizadas durante a Guerra Civil Americana foram amputações. Fonte: Biblioteca Americana de Medicina

Em 1871, seis anos após o término da guerra, o neurologista Dr. Silas Mitchell, cunharia o termo “membro fantasma” para denominar a percepção sensorial persistente após a amputação. As dores eram reais e não imaginárias como se poderia pensar estando amputado o membro.

No livro “Um Manual de Síndromes de Dor: Perspectivas Biopsicossociais”, o médico cientista J Katz escreve no capítulo sobre a Dor do Membro Fantasma:

“Muitos pacientes acordam da anestesia depois de uma amputação acreditando que a cirurgia sequer foi realizada. A sensação da existência do membro perdido é tão real que somente quando levantam o lençol para vê-lo que constatam que foi amputado.”¹

Vale ressaltar que “membro fantasma” expressa apenas um dos fenômenos fantasma, pois, em caso de lesão completa da medula espinhal, os pacientes também podem manter a sensação de ainda ter o corpo abaixo do nível da ruptura, ou seja, o “corpo fantasma”. O mesmo ocorre após a remoção cirúrgica de mamas na mastectomia, de olhos, genitais e outras partes do corpo, ou a desnervação de alguma área. Ou seja, a ausência ou extirpação de qualquer segmento do corpo pode gerar a sensação fantasma ou dor fantasma.

A dor do membro fantasma se destaca devido à sua alta incidência entre amputados: 80 a 90% relatam algum episódio de dor fantasma, sendo ela sentida em todo o membro após a cirurgia, e mais distal com o passar do tempo. Uma porcentagem pequena de pacientes continuarão a ter dor e, quando isto ocorre, as dores podem persistir por anos ou por toda uma vida, causando incapacidade prolongada.²

Melzack e Wall (1988), cientistas famosos por sua Teoria de Comportas de Dor (1965), descreveram dois tipos de membro fantasma: com dor e sem dor.

Aqueles lesionados que dizem não sentir dor fantasma descrevem apenas sensações de temperatura, posicionamento, comprimento, volume e movimento.³

Caracterização do membro fantasma com dor

Ilustração de como dor é geralmente percebida em membro fantasmaParestesias (formigamento, choquinhos), disestesias (intensificação dolorosa das parestesias), espasmos, sensação de facadas que sobem e descem o membro, ardência como se estivesse exposto a uma chama e dor, sensação de esmagamento e cãibras.

Mecanismos

Pouco se sabe sobre os mecanismos do fenômeno da dor fantasma; o que sabemos é que distrofias e amputações são associadas a alterações na neuroplasticidade do cérebro na área correspondente daquele membro. Também, que não é causada exclusivamente por um ou outro motivo.

Tratamentos

As terapias para alívio da dor do membro fantasma e reabilitação do membro afetado são semelhantes aquelas utilizadas em reabilitação pós-AVC ou nas distrofias simpáticas reflexas.

Os tratamentos conservadores consistem das terapias físicas (massagens, frio, exercícios); TENS (neuroestimulação transcutânea); e a terapia farmacológica.

Trabalhando a neuroplasticidade

A terapia mais recente que está tendo bons resultados e aceitação é a Terapia do Espelho, onde coloca-se o membro não amputado diante do espelho e observa a imagem produzida no espelho mimetizando o membro não existente. Assim  “engana-se” o cérebro a acreditar que está fazendo movimento e neste processo trabalha a neuroplasticidade cerebral. Veja uma amostra da terapia no vídeo:

Nesse outro vídeo, trouxe uma reportagem mostrando o que os neurocientistas observaram, as hipóteses que formularam, e as experiências científicas que realizaram para comprovar a neuroplasticidade. Vale a pena dar uma conferida. Clique aqui.

A Terapia do Espelho faz parte da Graded Motor Imagery.

Neste, considerado um Modelo do Raciocínio de Dor e Movimento, usando ferramentas desenvolvidas para tal finalidade, o paciente realiza exercícios gradativamente em três estágios:

1) reconhecimento de direito/esquerdo – quando a pessoa sente muita dor, pode perder parte de sua capacidade de determinar em qual lado está a dor.

2) imageria motora explícita – você se imagina movimentando a mão, por exemplo. Fazendo isso, são acionados os neurônios espelho que avisam o cérebro que você está realizando o movimento, só que na verdade, está realizando o movimento apenas na imaginação. Pense sobre a véspera de viajar para algum lugar… você se imagina indo, tomando o caminho que tem de tomar, verificando seus documentos, olhando o número do portão, etc. Você faz a ação no cérebro, sem realizar a ação, e o efeito é um senso de familiaridade.

3) terapia do espelho – mencionado acima.

Junto com estas terapias, o suporte psicológico é necessário, pois, não podemos esquecer que os pensamentos e crenças também fazem parte da forma que encaramos ou percebemos dor, e a reflexão e reprogramação neste sentido são poderosos auxílios no manejo da dor.

Finalmente, embora seja um número pequeno de pessoas que sofrem com dores fantasma persistentes, estas dores podem causar enorme sofrimento e sendo tão diversas as dores, o alívio delas constituem um desafio diagnóstico e terapêutico.

 

INFO INTERESSANTE NA WEB

Fotos e Fatos da Amputação na Guerra Civil Americana – Biblioteca Americana de Medicina

Neuroplasticidade em Debate

 

Referências

1. Katz, J. Phantom limb pain. In AR Block, EF Kremer,& E. Fernandez (Eds.), Handbook of pain syndromes: Biopsychosocial perspectives (pp.403-434). Mahwah, NJ: Lawrence Elbaum, 1999.

2. Grilo, I; Dor no Amputado: Revisão bibliográfica. Acessado em 29/09/2016. http://bit.ly/2dhxN4L

3. Jensen, TS. & Rasmussen, P. In P Wall & RA Melzack (Eds.), Textbook of Pain (pp. 651- 666). Churchill-Livingstone, Edinburgh, 1994.

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