“Storytelling” (contar histórias) no consultório

[vc_row][vc_column][vc_column_text]Contar histórias no consultório, narrar suas experiências, falar de seus anseios e necessidades tornou-se possível há milhares de anos quando nossos ancestrais desenvolveram a fala e começaram a se expressar através dela. Desde então as narrativas são centrais à comunicação entre os seres humanos.

Pacientes também são considerados contadores de histórias, segundo o sociólogo AW Frank (2000), pois o paciente, quando chega para sua consulta médica, vai contar sua história de adoecimento, de expressar como era antes, como adoeceu, quais os medos com relação à doença, o que deseja. A maioria das vezes quer “a vida de antes, de volta”.

Sempre digo que o médico intervencionista de dor tem de ser ‘bom de prosa’ para estabelecer a comunicação e tem de saber ‘puxar a língua’, pois um ‘causo’ que o enfermo conta pode revelar muito sobre seus anseios e necessidades, dentro do seu contexto de vida (o psicossocial).

Que balde de água fria se o médico atendente se mostrar pouco atento ou pouco receptivo à sua narrativa, aparentando pressa. As habilidades de empatia e de comunicação são essenciais para criar o vínculo com um paciente e assim engajar e mobilizar o paciente para “abraçar” seu tratamento.

A narração existe em vários momentos na interação médico-paciente. No campo da dor, uma avaliação básica inclui perguntas e narração oral sobre tipo de dor, intensidade, início, duração, localização, mudança de local e sintomas associados.

Na hora, estas informações são anotadas pelo profissional da saúde em uma narrativa escrita (anamnese) que será ‘interpretada’ por ele mais tarde quando juntar os resultados de exames e testes, etc.

Até mesmo na hora de comunicar seus achados para o paciente, o médico precisa ter habilidades narrativas, adequando sua linguagem (menos técnica) durante as explicações e usando palavras acessíveis e um tom de voz que convida à confiança.

Quanto mais empatia, compaixão e reflexão por parte do médico, no diagnóstico, tratamento e acompanhamento das doenças, maior a possibilidade de transformar histórias de caos em histórias de busca e de restituir alguma qualidade de vida, afirma Rita Charon, médica e fundadora do programa de Medicina Baseada em Narrativas (MBN) na Universidade de Columbia, EUA.

Abaixo, para exemplificar a questão do “contar histórias” e sua relevância na relação médico-paciente, trouxe os relatos de dois participantes de um grupo de estudantes de medicina que fizeram parte de uma vivência da prática da abordagem MBN, em 2018, na Escola de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro:

Estudante 1: Eu me senti muito emocionada com a história do senhor R. Sua vontade de viver, o brilho no olhar e a alegria, mesmo internado, são contagiantes. O modo como fala de sua família e de seu trabalho nos inspiram a fazer o que realmente amamos e a forma como ele utilizou a perda do seu pai para se tornar alguém melhor é uma lição de como lidar com as dificuldades que aparecem na nossa vida.

Estudante 2: Foi a melhor experiência que tive desde o início do curso. Saí da enfermaria me sentindo sem um peso nas costas que me incomodava: medo de não conseguir lidar bem com o paciente. Sinto que consigo conversar com qualquer paciente, independente da sua história. Isso eu não aprenderia em livro algum.

Meu primeiro espanto foi que ele fez questão que conversássemos e aquela mesma pessoa com um semblante de tristeza se mostrou feliz e animada em poder conversar. Fiquei em um misto de surpresa e felicidade pelo ocorrido. Após o assunto sobre a doença do paciente, a conversa se deu tão fluida, tão saudável e gostosa de se ter… foi um dos melhores contatos com pacientes que eu já tive. Aprendi muito e, em tão pouco tempo, criei uma ligação forte que eu nem mesmo achava possível ser construída dessa forma.

Juntos, médico e paciente poderão reescrever as histórias de adoecimento, cada um à sua maneira, de acordo com sua necessidade. Em casos terminais, por exemplo, é possível um ajudar ao outro a lidar com sentimentos como impotência perante a morte iminente, ambos cientes da sua humanidade, independente de seus conhecimentos.

A boa notícia: ‘diversas escolas médicas em todo o mundo têm incorporado, em anos recentes, o exercício das narrativas, com o objetivo de formar profissionais mais aptos para valorizar a perspectiva dos pacientes na compreensão do processo de adoecimento e nas formas de atenção e cuidado dispensadas.’

Para Maria Auxiliadora Craice de Benedetto, médica da família e proponente da MBN no Brasil, por meio de uma abordagem mais humanizada, os pacientes têm a possibilidade de ‘superar e transcender as barreiras’.

Fontes bibliográficas:
-Frank AW. The standpoint of storyteller. Qual Health Res 2000;10(3):354-65.
-De Benedetto MAC, Blasco PG, de Castro AG, de Carvalho C. Once upon a time … at the Tenth SOBRAMFA International and Academic Meeting, São Paulo, Brazil. J Learn Arts 2006;2(1):7.
-Benedetto MAC. Entre dois continentes: literatura e narrativas humanizando médicos e pacientes. Mundo Saude. 2010; 34(3):311-9.
-Langewitz W. Denz M, Keller A, Kiss A, Rüttimann S. Wössmer B. Spontaneous talking time at start of consultation in outpatient clinic: cohort study. BMJ 2002 Sep 28;325(7366):682-3.
-Charon R. The patient-physician relationship. Narrative medicine: a model for empathy, reflection, profession, and trust. JAMA 2001 Oct;286(15):1897-902.
_____.Narrative medicine: attention, representation, affiliation. Narrative 2005;13(3):261-70.
http://www.scielo.br/pdf/icse/v22n65/1414-3283-icse-22-65-0621.pdf
-Claro LBL, Mendes AAA. Uma experiência do uso de narrativas na formação de estudantes de Medicina. Disponível on line em: <http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0850.>[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

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