Para se ter uma idéia geral da abordagem interdisciplinar hoje adotado nos centros de dor mais avançados, a seguir a tradução de um trecho de um artigo científico falando sobre a mudança de abordagem do tratamento da dor crônica para um modelo biopsicossocial.
De acordo com um levantamento feito em 1998 pela Organização Mundial de Saúde, de 26 000 pacientes que receberam cuidados primários em cinco continentes, 22% relataram dor persistente no ano anterior.
Parte do problema se deve a alguns provedores de cuidados de saúde não conseguirem acompanhar os avanços da medicina da dor e continuarem a seguir uma abordagem biomédica, que considera uma via específica como a única fonte de dor.
Neste modelo, toda dor é considerada um sinal de aviso de que algum tecido foi lesionado, e se o tratamento conservador não funcionar, alguma técnica cirúrgica será capaz de corrigir o problema.
O paradigma moderno de controle da dor mudou desta abordagem biomédica para a mais ampla abordagem biopsicossocial, em que os mecanismos da dor passaram a integrar as informações vindas dos sistemas sensoriais, emocionais e cognitivos.
Avaliação da Dor
A dor é um fenômeno subjetivo, complexo e pessoal, e só pode ser avaliado indiretamente pelo relatório do paciente. Os métodos utilizados para a triagem da dor aguda são insuficientes para fornecer uma visão abrangente do impacto multidimensional da dor crônica no paciente.
Em um paciente com dor crônica, a avaliação não deve ser limitada à intensidade da dor; deve pelo menos incluir as interferências funcionais e seu impacto emocional.
Escalas unidimensionais da dor avaliam sua intensidade e incluem avaliação numérica, escala visual analógica (EVA) e escalas de imagem utilizadas para crianças (expressões faciais).
Escalas de dor multidimensionais avaliam o efeito da dor sobre o humor, atividades e a qualidade de vida, e incluem os Questionários de Dor McGill, SF-36 e Beck, para citar alguns. Um exame clínico completo, pode fornecer pistas para as causas da dor e avaliações psicológicas formais estão indicadas em subgrupos de pacientes com dor crônica para avaliar comportamentos mal adaptado à dor, transtornos somatoformes, catastrofização, etc.
O controle das síndromes dolorosas crônicas
Tradicionalmente, a abordagem biomédica promete a cura através da interrupção ou bloqueio das vias por meio farmacológico ou cirúrgico. A abordagem biopsicossocial encara a dor como uma interação dinâmica entre fatores físicos, psicológicos e sociais, onde objetivos de tratamento mais realistas para os pacientes são instituídos:
- A redução, em grande parte e não a eliminação total, da dor
- Melhoramento do funcionamento físico e social
- Melhora do humor e sintomas associados, tais como padrões de sono
- Desenvolvimento de um estilo ativo de enfrentamento e habilidades de auto-gerenciamento da dor
- Retorno ao trabalho
- Redução na utilização de serviços médicos
Cada vez mais as evidências dão suporte à utilização de uma abordagem interdisciplinar, onde terapias múltiplas são fornecidas de forma coordenada, e onde há interação ativa e uma filosofia comum que promove a participação ativa do paciente, e a participação entre todos envolvidos no processo.
Recomenda-se o envolvimento de um core-team (núcleo) nos cuidados primários dos pacientes com dor crônica. Sua composição variará de região para região, e dependerá também da disponibilidade de recursos e da complexidade do problema do paciente com dor.
Uma equipe de dor pode ser constituída por um médico de dor (geralmente um médico de cuidados primários com um interesse especial em tratamento de dor), um terapêuta ocupacional e um fisioterapêuta.
Nas áreas metropolitanas, uma equipe interdisciplinar pode possuir outros profissionais, mas não estão limitados a esses; podem incluir um anestesiologista com habilitação em intervencionismo da dor, um neurologista, um ortopedista, um psiquiatra/psicólogo, fisioterapeuta, educador físico.
Os papéis dos membros da equipe também podem se sobrepor e o fisioterapeuta, por exemplo, também pode ser um responsável pela educação ao paciente, nos programas de exercícios e auxiliar na aplicação dos princípios da terapia cognitivo-comportamental (TCC).
Tem sido demonstrado que o manejo interdisciplinar da dor que enfatiza a restauração funcional produz os melhores resultados no controle da dor em pacientes de dor crônica.
Educação
É importante validar a queixa de dor do paciente e explicar que os fatores que iniciaram o problema da dor são muitas vezes diferentes daquelas que a mantém. Medo e comportamento catastrófico podem intensificar a experiência da dor. O paciente deve ser informado sobre os objetivos do programa de tratamento e certos mitos de dor crônica devem ser dissipados, incluindo:
- Pesquisando o suficiente você encontrará a causa e a cura da sua dor
- Os exames anormais validam e explicam a sua dor
- Apenas a dor orgânica é real
- Você tem que aprender a viver com ela
- Deixe a dor ser seu guia – descanse quando dói
- Lesão é igual a dano.
O resultado do tratamento da dor muitas vezes é determinado por aquilo que o médico, terapêuta e paciente esperam.
Em suma, embora John F Bonica tenha alavancado o reconhecimento da abordagem multidisciplinar no manejo da dor, a publicação em 1965 da “Teoria do Controle do Portal” por Melzack e Wall revolucionou o conceito da dor e do tratamento da dor.
O reconhecimento da dor crônica, não só como um sintoma, mas como uma doença em si, sinalizou uma grande mudança conceitual. Isso significou uma mudança no controle da dor crônica para a abordagem biopsicossocial multi- (inter-) disciplinar, onde há comunicação entre os membros da equipe e ênfase na participação ativa do paciente e na melhora funcional.
Esta abordagem inclui intervenções educativas, bem como abordagens cognitivas comportamentais e terapia de exercício físico supervisionado.
Tratamento farmacológico adequado deve ser baseado em evidências e os resultados devem incluir melhoria na capacidade funcional do paciente, não somente o alívio da dor.
Terapias invasivas devem ser conservadoras e cuidadosamente selecionadas após uma avaliação global e um período adequado de controle conservador abrangente.
Fonte: Pain management in primary care – current perspectives. Meyer, HP. SA Fam Pract 2007;49(7): 20-25. Tradução Camille Khan.